“Ao quebrar o silêncio a linguagem realiza
o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter.”
[Merleau-Ponty | O Visível e o Invisível.]

Merleau-Ponty nos fala de um olhar interior, um terceiro olho que vê a obra de arte, que vê o nada que ela acrescenta ao mundo para celebrar o enigma da visualidade.

Merleau-Ponty fala que é através do olhar que primeiro interrogamos as coisas, e devemos compreender o corpo, de forma geral, como um sistema voltado para a inspeção do mundo.

“O que transporto para o papel não é a coexistência das coisas percebidas, a rivalidade delas diante de meu olhar. Encontro o meio de arbitrar o seu conflito, que faz a profundidade” (Merleau-Ponty, 1991 [1960], p. 50).

Os pintores impressionistas uniram-se, primeiramente, por discordarem dos padrões vigentes nos salões de arte de Paris no século XIX; perceberam que precisavam expressar um olhar para as coisas diferente daquele estabelecido pelos moldes acadêmicos da arte.

Cézanne não se interessou pela luz que tudo banha e envolve com um movimento colorido, onde tudo tende a adquirir um só valor: árvores que se confundem com o ar, que se junta com a terra e a água em paisagens pouco nítidas.

Cézanne quis a luz que faz do objeto um sólido, e não a que o funde com a atmosfera, como os reflexos da água que tanto atraíam os impressionistas. Não por acaso preferiu as naturezas mortas, as paisagens onde aparecem construções, e a montanha Sainte-Vitoire, motivos que privilegiam as formas e o espaço.

Cézanne vai usar muitas linhas para desenhar os objetos, pois acreditava que uma só não traduz sua materialidade, assim como um círculo não é uma maçã.

Como diz Merleau-Ponty, “marcar apenas uma seria sacrificar a profundidade, isto é, a dimensão que nos dá a coisa, não estirada diante de nós, mas repleta de reservas, realidade inesgotável” (ibid., p. 117).

Por isso os problemas da pintura são concêntricos,12 e “a expressão do que existe é uma tarefa infinita” (ibid.): o espaço e as coisas se constróem juntos, e como disse o pintor Georges Braque, que soube como poucos olhar para o trabalho de Cézanne, “as pessoas parecem ignorar totalmente que o que está entre a maçã e o prato se pinta também” (Charbonnier, 2002, p. 27).

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“a pintura não busca o exterior do movimento, mas suas cifras secretas” (ibid.), o que Merleau-Ponty generaliza para todo o sensível, cujo sentido a pintura deve, então, tornar visível.13

A paisagem, dizia Cézanne, se pensa em mim e sou sua consciência (...) Nada está mais distante do naturalismo que esta ciência intuitiva.

A arte não é uma imitação, nem, por outro lado, uma fabricação segundo os votos do instinto e do bom gosto. É uma operação de expressão

(...) Assim como a palavra não se assemelha ao que designa, a pintura não é uma cópia

(...) Esquecemos as aparências viscosas, equívocas e, através delas, vamos direto às coisas que apresentam.

O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permaneceria encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. (1984c [1948], pp. 119-120)

Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas, só têm existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos.

O olhar do pintor pergunta-lhes como é que eles se arranjam para fazer que haja subitamente alguma coisa (...). (Ibid., p. 91)
Merleau-Ponty: “Não temos outra maneira de saber o que é um quadro ou coisa senão olha-los, e a significação deles só se revela se nós os olhamos de certo ponto de vista, de uma certa distância e em um certo sentido; em uma palavra, se colocamos nossa conivência com o mundo a serviço do espetáculo

"Para Cézanne, um quadro não representa nada. Ele é aquilo que percebemos, o seu sentido não é aquilo que é transformado em idéia, em fala; é aquilo que ele é antes de ser enquadrado em qualquer tema ou teoria. É algo que toca num determinado ponto singular da sensibilidade do observador. Só se tem acesso a arte a partir da própria obra, através de um contato direto com ela, um processo ligado à experiência e ao pensamento"Almandrade
artista plástico, poeta e arquiteto, reside em Salvador-BA