Saturday, June 16, 2007

PAISAGENS URBANAS-GABRIEL JOAQUIM DOS SANTOS-CASA DA FLOR



"Uma Arquitetura Poética
Amelia Zaluar

Rio de Janeiro. São Pedro da Aldeia. Uma pequena casa. Uma jóia. Obra-prima da arquitetura espontânea, construída por inspiração de sonhos e devaneios de um homem pobre, negro e semi-alfabetizado. É a Casa da Flor, obra de Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985), simples trabalhador nas salinas, filho de uma índia e de um ex-escravo africano.

Desde criança, Gabriel, de temperamento artístico pronunciado, pressentia que teria que viver sozinho para dar vazão à sua grande criatividade. Já rapaz, em 1912, começou a construção de uma casa, próxima ao lar da família: pequena, de pé-direito baixo e três cômodos apenas - sala, quarto e depósito para guardar quinquilharias. Lentamente, à medida que ia conseguindo o material, foi erguendo a casa de pau-a-pique, utilizando também, pedras para o assoalho e algumas paredes.

Sonhador, anteviu um dia, em 1923, enquanto dormia, a imagem de um enfeite que embelezava a sua casa. Que fazer ? Desistir do sonho, apagar da memória a visão tão bela que o inconsciente lhe trazia ? Como solucionar o problema de não ter recursos para comprar o material necessário, a fim de concretizar aquela visão ? Surgiu em sua mente uma idéia, que de tão bizarra fez com que muitos parentes e vizinhos passassem a olhá-lo com estranheza no início da tarefa a que se dedicou até morrer, 63 anos depois: usar o lixo abandonado nas estradinhas da região, garimpar nesses montes de detritos - de que todos se afastam - cacos de cerâmica, de louça, de vidro, de ladrilhos e de toda uma série de objetos considerados imprestáveis para o uso, tais como velhos bibelôs, lâmpadas queimadas, conchas, pedrinhas, correntes, tampas de metal, manilhas, faróis de automóveis... Sabiamente, ele comentava que fez uma casa "do nada" .


Sempre inspirado por sonhos e devaneios, passou a criar flores, folhas, mosaicos, cachos de uvas, colunas e esculturas fantásticas, que ia fixando dentro e fora da casa. Inventava luminárias com lâmpadas queimadas; nichos para proteção de um osso de baleia e de alguns bibelôs mais bonitos; molduras para retratos fixados à parede; uma estante chamada por ele de "altar dos livros"; bancos e armários de alvenaria, sensualmente aplicados, cobertos de ladrilhos coloridos. Gravava ou moldava com cimento inscrições para assinalar os trabalhos mais significativos... Uma composição de riqueza plástica surpreendente, o barroco intuitivo criado por um artista marginal e solitário. Não havia materiais nobres: o imprestável, o estragado, o feio, o inútil, transformavam-se através de seus olhos visionários em matéria preciosa para a criação artística. Verdadeiro alquimista, explicava: "tudo caquinho transformado em beleza".



Ao optar por metamorfosear o lixo em produto artístico, Gabriel, isolado num recanto da América do Sul, integrou-se num grupo inovador, que no início do século, na Europa, revolucionou, com as pesquisas de Picasso, Paul Klee, Braque, Kandinski, Miró e outros, os conceitos de arte até então vigentes.

Profundamente religioso, atribuía a Deus a realização da sua obra, ela era fruto de inspiração divina:

- O que é, não sei... Aí tem um mistério na minha vida que eu mesmo não posso compreender. Os homens fazem trabalho, mas precisam aprender... Um carpinteiro precisa aprender. Eu não aprendi com ninguém. Eu não tive escola. Aprendi no ar, aprendi no vento... Isso não é de mim. Deus me deu essa inteligência, vêm aquelas coisas na memória e eu vou fazer tudo perfeitozinho conforme sonhei.

Gabriel sentia orgulho de sua inteligência e do produto dela. Seus olhos traíam malícia quando dizia que aquilo não tinha valor, que nada ali custava dinheiro, mas, logo adiante, admitia:

- Eu fico mais satisfeito trabalhando com os cacos porque as coisas modernas, coisas novas, ninguém vai ver. A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo moderno, tudo bem organizado, tudo custa muito dinheiro. As pessoa vêem ali a força da riqueza. Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza.



A obra de Gabriel, um artista despossuído, que nunca sentou num banco escolar, sem acesso aos meios de comunicação, que pouco viu da arte erudita - conhecia apenas, e admirava, as igrejas e conventos antigos da região - vem provar que independe do ensino institucionalizado o aparecimento da centelha da criação num ser humano, nasce com ele, seja qual for sua raça, sexo, cultura.

Ele se incluiu, com sua única e poética obra, no seleto grupo dos "construtores do imaginário", artistas/arquitetos que fugiram dos padrões tradicionais e criaram formas ditas por uma fantasia liberta de modelos, uns de origem popular, como Ferdinand Cheval, na França; outros de origem erudita, como Antoni Gaudí, em Barcelona, ou Antonio Virzi, no Rio de Janeiro. Arquitetura surreal, fantástica, insólita, orgânica, objeto de estudo e interesse crescente.

Para artistas, intelectuais e arquitetos de renome no país, a "Casa da Flor" é um bem cultural da maior relevância. Manifestaram sua admiração por ela, em diferentes ocasiões, entre outros, Alcides da Rocha Miranda, Ariano Suassuna, Carlos Scliar, Lélia Coelho Frota, Ítalo Campofiorito, Ferreira Gullar, Nise da Silveira, Carlos Byington, Zanine, Paulo Coelho e Affonso Romano de Sant'Anna que escreveu:

"E ali quase por um século, viveu um preto solitário, transformando a pedra em flor. Inutilmente. Ludicamente. Lindamente, com aquela pureza que só os iluminados têm... Com suas flores de pedra Seu Gabriel inventava a primavera. A primavera possível."

Há no objetivo estético, como diz Aristóteles, um "elemento de contemplação de satisfação fora da necessidade imediata, uma alegria sensual". Gabriel vivia essa alegria, todas as tardinhas, ao se recolher a sua casa, para descanso:



- De noite, acendo a lamparina, me sento nessa cadeira, oh, que alegria para mim! Quando eu vejo tudo prateado, fico tão satisfeito... Tudo caquinho transformado em beleza... Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito, me conforta... ""





Todo o material mostrado aqui, incluindo as fotografias, é parte da pesquisa realizada pela professora Amelia Zaluar, que conviveu com o artista durante oito anos (1978 - 1985).

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