Friday, October 05, 2012

A Poesia Imagética de Remédios Varo

Por Eliana Maria L.S Andrade


Remédios Varo é para mim  uma  doce e delicada fada das imagens.
Ela morreu dia 8 de outubro de 1963, 20 dias antes do dia de meu  nascimento e tenho uma afinidade imensa com suas obras.
Com apenas tintas sobre um suporte ,muito talento e sensibilidade, suas obras convidam o imaginário do observador a fazer viagens cósmicas, experimentar o mundo mágico da alquimia, do onírico, da matemática, dos contos de fadas.
Suas obras penetram no imaginário infantil muitas vezes adormecido em nós , adultos.


[...] Sob sua forma simples, natural, primitiva, longe de qualquer ambição estética, de qualquer metafísica, poesia é uma alegria do sopro, a evidente felicidade de respirar. O sopro poético, antes de ser uma metáfora, é uma realidade que poderíamos encontrar na vida do poema [...] BACHELARD, 2001, P.245

A obra de Remédios Varo é permeada desse sopro poético de que fala Bachelard no texto acima .
Seus trabalhos são poesia soprada de modo  visceral, ambientada em cenários de terras fantásticas, impregnada das mais remotas lembranças de um mundo jamais visto ou vivido, exceto nos devaneios infantis onde todos os seres, formas e situações são possíveis.
Sua paixão pela pintura Flamenca em especial por Bosch, e também por El Greco e Goya a influenciaram profundamente. As referências estéticas desses mestres da pintura aliadas a suas viagens, aos anos em terras de diferentes culturas, seus estudos místicos e conhecimentos na área da ciência, matemática lhe concederam uma estranha e misteriosa harmonia de elementos fantásticos, surreais, únicos, manipulados por ela como se fora uma alquimista das imagens oníricas.

Cada uma de suas obras se apresenta como um momento de decantação das imagens do mundo real, com suas mazelas, dores, medos, alegrias, carências, frustrações, anseios, e que delicadamente vão passando diante dos olhos.
Suas imagens vão separando o que é palpável, humano, degradável, e lentamente liquefazendo-se em vapores coloridos, como que insinuando uma visagem. Assim como se mostram os sonhos.

Umas das obras mais delicadas e femininas que Remedios Varo produziu e que tive a honra de vê-la de perto, é a Papilla Estelar-Celestial Pabulum. Uma obra de estrutura formal e figurativa. Como se trata de uma obra de uma pintora surrealista, as figuras são representacionais de conteúdo simbólico e metafórico.

Vamos Analisar a Obra? ( deixo bem claro que a analise aqui é de total responsabilidade minha.São minhas  impressões pessoais sobre a obra )

Informações técnicas sobre a obra

Artista: Remédios Varo
Título da obra: Papilla Estelar
Data da obra: 1958
Categoria: Pintura
Técnica: Óil on board
Dimensão: 36x24 in.
91x61 cm
Pais: Espanha/México
Escola: Surrealismo



Apesar de ter sido produzida no inicio da segunda metade do sec.XX, a obra apresenta elementos estéticos Renascentistas em especial, a marca indelével da influência de Hieronymus Bosch a quem muito a influenciou.
Portanto, em seus trabalhos Varo utiliza-se de padrões de perspectivas muito semelhantes as do final do século XV. Recorre a figuras de simbologia complexa, caricaturadas, mas com uma delicadeza refinada, feminina, alegórico e transcendente.
Fiquei completamente encantada quando tive a oportunidade de ver essa obra de perto.Os verdes, a textura. a força mágica que dela emanava.Fui até a exposição ávida para ver Frida Khalo mas foi Remedios Varo quem roubou meu olhar com essa obra.
A imagem apresenta uma peça arquitetônica, centralizada, facetada, com uma abertura frontal cuja estrutura sugere ser a ponta de uma torre muito alta, pois suscita a idéia de estar sustentada no ar, pois está envolvida por brumas e nuvens.
 O fundo possui uma magnífica textura e uma variação de tons de verdes, sóbrios.
Sobriedade é uma das características marcantes na paleta de cores de Remedios Varo.
Talvez essa estrutura seja de madeira ou de um metal acobreado cujo interior e prateado e polido. Seu formato hora lembra um pequeno palanque ou coreto, e por vezes provoca a lembrança de um oratório ou uma gaiola. O assoalho da estrutura e facetado e possui uma via de acesso por meio de três degraus.
Na ponta dessa estrutura há uma espécie de funil ou algo que suga a massa de cores mais claras do fundo da imagem. Esse funil ou algum utensílio semelhante de forma cônica de metal ou outra matéria similar está acoplado a uma cânula se entende para o interior da estrutura e faz duas curvas quebradas até se encontrar com uma maquina de moer que esta fixada a uma mesa.

A mesa coberta com um tecido possui um prato logo abaixo da maquina e ao lado uma mulher. A mulher, sentada em um tamborete ou banco, sobriamente vestida de marrom, tem o rosto e cabelos de um amarelo intenso, quase dourado, e manipula a manivela da maquina de moer que esta  fixada à mesa. Com a mão  direita segura uma colher que utiliza para  levar alimento estelar até  a boca da lua.

A lua é crescente e isso  me leva a imaginar a lua quando  cheia, gordinha,  alimentada de papa de estrelas. Essa lua está disposta a frente da mulher e está aprisionada em uma delicada gaiola. Uma imagem mítica e metafórica. Pela massa que representa as estrelas  acima da estrutura arquitetônica suponho  que se trata  de uma citação da Via-Lactea.
Assim como praticamente todas as obras de Remedios Varo, Papilla Estelar tem estrutura narrativa. È suave e feminina e feminista. Combina o mundo real com o fantástico. Faz uma ponte entre arte e a ciência. Uma mulher alimentando a lua com pó de estrelas. A via láctea servindo de alimento para uma lua crescente.
Remedios Varo em sua poética revela seu mundo interior de fantasias e utiliza-se de suas próprias experiências de vida, suas paixões, frustrações para compor a narração. A obra parece falar de fertilidade, do berço das estrelas e do mundo humano que se regenera a todo o momento tendo a mulher como fonte procriadora que alimenta e mantém a possibilidade da existência da raça humana. A lua crescente simboliza as energias femininas.

Ao alimentar a lua de pó de luz estelar o rosto da figura  feminina, que possuiu um olhar perdido e resignado, é totalmente iluminado com uma luz quente semelhante à luz solar paradoxalmente ao brilho frio da lua. Ora, sendo a lua um mero refletor e redirecionador da luz solar para a Terra, os filhos lunares seriam uma forma indireta dela receber essa luz. Seu olhar nao direcionado é  um elemento que me  causa muita estranheza , o fato do seu  olhar  ser vago, perdido. Ela não fita o olho de quem ela alimenta . Remédios varo jamais pode ter filhos e falando sobre essa obra e sua intenção ao pintá-la, e a respeito do tema, ela disse: "Supe entonces que estaba hablando de mí y de mi cocina, y de mis hijos lunares y de las estrellas que yo trituro"

Quem seriam esses filhos lunares alimentados de papa de estrelas trituradas por ela em sua cozinha? Quem se alimentaria da luminosidade sugada das estrelas? 
Seria a cozinha seu ateliê de pintura ou a sua própria existência? Ela seria a metáfora da Terra? Seriamos nós a lua? observadores alimentados pela sua obra, passivos, aprisionados pelo devaneio da artista, ávidos para sermos alimentados por esse pó de estrelas triturados por ela?

Ao nos alimentar por essa luz vinda da imagem produzida, receberia ela a luz original através do reflexo da luz em nós?Poderia a luz tratar-se da fruição de quem observa seu trabalho? . Sua frase sobre a própria obra deixa enumeras interrogações ao invés de explicá-la.
Papilla Estelar remete-me aos devaneios poéticos do filosofo Gastón Barchlard (2001) ao dizer que [...] o sonho é a cosmologia de uma noite [...], o filosofo discorre sobre as nebulosas e diz que a via Láctea quando citada em uma obra poética toma para si tanto valor que acaba por declarar toda intenção do autor.
[...] a nebulosa da Via - Láctea qual uma vista atenta deveria atribuir exatamente a mesma fixidez das estrelas e na contemplação de uma noite, o tema de incessantes deformações. Sua imagem é contaminada simultaneamente pela nuvem e pelo leite. A noite se anima nessa luz leitosa. Uma vida imaginaria se forma nesse leite aéreo. O leite da lua vem banhar a terra, o leite da via láctea permanece no céu. [...] Nessas vibrações imaginarias, o sonhador se deixa embalar. Parece que ele reencontra a confiança de uma infância distante. A noite é um seio intumescido. [...]
BACHELARD, 2001. pp.202-203

 “A noite é um seio intumescido” e é desse seio e do mundo de sonhos que Remedios Varo nos oferece em Papilla Estelar uma imagem poética, fantástica, e ao mesmo tempo de uma familiaridade desconcertante que não há como não se identificar com ela.
A energia vital da natureza e do cosmo, a luminosidade que propaga e expande o olhar. Varo trata da alquimia do cosmos, das coisas voláteis que existem no que parece invariável. Do que parece fixo no Universo.

A força da figura feminina apesar de alimentada pelo conhecimento ,ainda parece permanecer aprisionada. As mulheres mesmo ocupando um lugar importante dentro da produção de trabalho, participante ativa do processo de construção da sociedade moderna, e inclusive com seu pensamento e trabalho intelectual, ainda esta atracada a convenções machistas.
Remédios Varo que presenciou e participou de boa parte desse processo de emancipação feminina, e dos questionamentos sobre essa questão, pode falar e citar em sua obra com muita propriedade sobre a problemática social que a mulher enfrenta,sobre suas fragilidades sua importância e sua força.




REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
BARCHELARD, Gaston. O Ar e os sonhos. Martins Fontes. São Paulo 2001

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